Ainda que já se reconhecendo pelo nome de Valentin Ourives de Vargas e apresentando características físicas masculinas, o morador de Santa Cruz do Sul, hoje com 28 anos, passou por diversas situações constrangedoras quando ainda carregava em seus documentos um nome e um gênero com os quais não se identificava. “Acontecia muito de chegar numa loja ou estabelecimento e me tratarem no masculino, como de costume, mas após ver meus documentos, já passavam a me tratar no feminino e isso me deixava muito desconfortável”, lembra. Desde a retificação nos documentos, Valentin relata que essas situações têm ocorrido com menor frequência. A exemplo dele, cada vez mais pessoas têm procurado os cartórios gaúchos para solicitar mudanças de nome e sexo, em um crescimento de 25% neste ano. Agora, além de encontrarem a possibilidade de fazer a alteração sem necessidade de cirurgia de mudança de sexo e de autorização judicial, permitindo a realização do ato diretamente em Cartórios de Registro Civil de todo o país desde junho de 2018, pessoas transgêneros e transexuais relatam encontrar mais facilidade e agilidade no momento de solicitar o processo.
Valentin teve a retificação concluída há pouco mais de um ano, mas conta que procurou o cartório pela primeira vez muito tempo antes. Na época, encontrou dificuldades de agilizar o processo por conta da pandemia. Por sua vez, a também moradora de Santa Cruz, Leticia Isabela Conrado Werlang, de 19 anos, revela que há dois anos teve muita dificuldade de encontrar informações a respeito, sentindo despreparo dos profissionais. Contudo, ao procurar o serviço novamente no início deste ano, encontrou um cenário bem diferente. “Estou reunindo as documentações, falta apenas um documento. Em menos de dois meses já devo ter o registro concluído. Percebo que daquela época pra cá evoluiu bastante coisa”, conta ela, que busca ter esse reconhecimento nos documentos para se sentir mais completa e evitar constrangimentos. “Sempre que tenho que apresentar meus documentos em serviços e locais é horrível, pois parece que sou forçada a lembrar de uma coisa que não gosto”, relata, ao citar também que já teve diversas crises de ansiedade por ser tratada no masculino durante diversos atendimentos.
Nos cartórios
O Estado registrou nos primeiros seis meses de 2022 o maior número de pessoas que mudaram o nome e o sexo em Cartório de Registro Civil em um semestre, desde 2019 – após a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) pelo reconhecimento desse direito às pessoas transgêneros e transexuais -, ano em que foi possível contabilizar o primeiro semestre de atos, uma vez que a decisão do STF passou a valer em junho de 2018. Foram 80 alterações.
Em Santa Cruz, ainda que pequena, o Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais informa que a procura está aumentando, sendo registradas duas alterações em 2018, quatro em 2019, uma em 2020, oito em 2021, e quatro até o momento em 2022. O custo é estimado pelo cartório em aproximadamente R$ 180, sendo concluído o procedimento em dois dias úteis, após apresentada toda a documentação. “Desde que a legislação autorizou o procedimento, nosso cartório está adequado e prestando a mesma qualidade no atendimento”, enfatiza o 3º Registrador Substituto, Felipe Diehl Burtzlaff.
Já em Vera Cruz, o Cartório de Registros Públicos contabiliza duas alterações de nome e gênero, uma recepcionada e enviada ao cartório de Rio Pardo, local do nascimento do solicitante, em 2019, e a outra processada integralmente no local em 2020. O custo aproximado, conforme o estabelecimento, é de R$ 210. Contatado pela reportagem, o Cartório localizado em Monte Alverne, na terra da Oktoberfest, disse ainda não ter registrado tais solicitações.
Mais que números de atendimentos, os procedimentos concluídos significam novas vidas. “Foi a melhor conquista da minha vida até então. Isso significou demais, pois agora finalmente posso ser quem eu realmente sou. A nossa identidade é a coisa mais importante, porque é quem a gente é e, agora, posso afirmar isso enquanto cidadão legal no mundo”, arremata Valentin.
Documentação necessária
É preciso apresentar no cartório: requerimento inicial de retificação firmado pela parte interessada, certidões de nascimento e casamento, se for o caso, atualizadas, além da cópia dos seguintes documentos: RG; Identificação Civil Nacional (ICN), se for o caso; passaporte brasileiro, se for o caso; CPF no Ministério da Fazenda; título de eleitor; carteira de identidade social, se for o caso; comprovante de endereço; certidão do distribuidor cível do local de residência dos últimos cinco anos (estadual/federal); certidão do distribuidor criminal do local de residência dos últimos cinco anos (estadual/federal); certidão de execução criminal do local de residência dos últimos cinco anos (estadual/federal); certidão dos tabelionatos de protestos do local de residência dos últimos cinco anos; certidão da Justiça Eleitoral do local de residência dos últimos cinco anos; certidão da Justiça do Trabalho do local de residência dos últimos cinco anos; certidão da Justiça Militar, se for o caso.
Experiência
Sobre a experiência de alteração de nome e sexo nos documentos, Valentin relata que no cartório recebeu uma folha descrevendo uma série de lugares em que precisava solicitar certidões negativas, o que levou quase três meses. Após, foi aos bancos para atualização de cadastro, o que levou mais um tempo. “Percebi o quanto ainda há profissionais despreparados para resolver essas questões em alguns estabelecimentos. Ter algum estudo simples sobre questões de gênero, facilitaria o atendimento e evitaria desconfortos até para os profissionais, e principalmente, para as pessoas ali atendidas”, diz. “Seria interessante também se a gente não precisasse pagar para fazer esses documentos, pois quando nascemos, os nossos primeiros documentos são feitos todos de forma gratuita, e a retificação é como nascer outra vez, você terá aquele nome pela primeira vez em tudo”, desabafa.
Fonte: Jornal Arauto